sexta-feira, 1 de junho de 2012

À IMAGEM DE CECÍLIA

 
 

   A melhor maneira de criar algo novo, novíssimo, é aprendendo com tudo aquilo que é antigo. As antiguidades no geral guardam algo mágico, quase como um sopro divino - renovador e renovado.
   Dizem que por trás de cada texto existem vários outros, que um dia já foram publicados ou que nem saíram daquele vasto mundo que está na mente de quem escreve e de quem lê.
   Mas se eu pudesse criar um texto por cima de outro texto de alguém que já morreu, esse texto escondido seria  o dela: a menina dos olhinhos de gato... grande Cecília!
   Estava eu lendo uma de suas crônicas esta tarde mesmo. Sabe a sensação de ter algo grande, pulsando dentro, quase explodindo e pedindo: "leve-me para todos os cantos que fores, guarde-me na memória, conte-me ao vizinho, ao porteiro, ao amigo"?
   Pois bem, esta crônica a que me refiro se chama "Imagem".
   Cecília Meireles encontrou-se um dia de ter quebrado o carro entre algumas montanhas de Minas Gerais, eu suponho. E enquanto descia a montanha, um gatinho apareceu de repente. Era um pobre bichinho débil, que miava silêncio. Preto, parecia cinzento de tão sujo, maltratado, com um olho desfazendo-se em gelatina, e uma orelha empapada de sangue. 
   Assim diz ela: Olhou para mim tristemente, como nós às vezes olhamos para Deus. E eu certamente queria ajudá-lo. Mas então vi como aquele caminho deserto se fazia subitamente povoado; o espírito das superstições dizia-me: 'Olha que é um gato preto!' E o espírito da ciência murmurava-me: 'Está cheio de parasitas, que te infestarão!' E esse vil espírito prático da era contemporânea aparteava: 'Ademais, como podes ajudar se avista nem um teto nem um veículo?' E só o espírito do amor segredava tímido: 'Toma-o nas mãos e leva-o contigo! Verás que, no teu colo, seus olhinhos lacrimosos se fecharão, adormecidos; sua fome se esquecerá, suas feridas fecharão...'
    E assim ela continuou a descer a montanha, aos pés o gato preto quase morto, seguindo-a sempre, às vezes olhando para baixo, como que suplicasse ajuda por aquela tão grande possibilidade de alento que lhe fazia companhia; outras vezes trotando de felicidade, como se as feridas e o pelo caído mostrando nuas as costelas numa festa de pulgas já não fossem mais problema...
    E com ela desciam também todos os espíritos a duelarem por uma decisão.
    Todos continuavam a descer: o gato, os espíritos, e o coração de Cecília, que cochichava aflito: 'o grande céu, a verde floresta, o ouro do Sol derramando-se pela estrada, o mundo e as criaturas tornavam-se enigmáticos, ferozes e inúteis.'  
    Já na metade da montanha, ela resolve parar na sombra de uma árvore. O sol escaldante fazia estrelinhas no chão por entre as folhas, e ela então olhou o quanto já tinham percorrido: bastante para alguém sem água nem comida, mais ainda para um animal naquele estado de socorro, com os olhos nublados de remela e lágrima.
    Mas não havia nenhum hospital para gatos pretos feridos e famintos, não havia um ser humano sequer além dela, nenhuma salvação para quem tem fome ou sede, não havia casas à vista, o gato estava cheio de pulgas, sem contar as demais doenças contagiosas que todos nós sabemos que existem, tudo isso gritavam os espíritos à pobre Cecília, que agora via o gatinho acariciar seus pés...
    Só o espírito do amor segredava quase em silêncio: 'Não deixes o teu coração endurecer com o que estás ouvindo... Faze alguma coisa por este pobre animal que te segue arquejante. Lembra-te se algum dia  foste atrás de alguma coisa que fugisse, fugisse... Reflete que um dia poderás ir...'   Enquanto o espírito científico dizia: 'Mas um gato, afinal de contas, não é gente. E o sofrimento de um gato não é o sofrimento humano'.
    E o espírito do amor, suavemente insistia: 'Tudo é um sofrimento só, de alto a baixo, na criação. Compadece-te deste que te acompanha, pequena coisa que o destino pôs no teu caminho.'
    Ela perguntava a si mesma: 'Por que não nascem entre as pedras arroios de leite para os gatinhos abandonados? Ah! Irmão Francisco, os lírios andam vestidos de seda, e os passarinhos por toda a parte encontram grão que os sustente, mas o gatinhos, bem vês, não têm rato com que se distraiam e o transeunte humano nem o pode socorrer nem explicar...'
    Pôs-se então a descer de novo a montanha, extensa, que agora tinha subidas e descidas... Pela estrada nenhum leiteiro a dar um pote de leite ao gato, e alguns queijos de minas para a mulher igualmente faminta.
    No coração dela ainda soava aquela voz que lhe pedia para cuidar ela mesmo daquele gato, segurá-lo, retirar uma a uma aquelas pulgas todas, levá-lo consigo para onde quer que fosse. Mas na sua mente todos os espíritos ainda duelavam entre preconceitos e superstições, afinal, era um gato preto, em frangalhos...
    Nesse meio tempo, subia alguma pessoa distraída, e o gatinho, ainda mais distraído com os pés que iam dos que vinham, passou a seguir o outro andarilho, no caminho contrário ao da nossa cronista.
    Ela bem que se esqueceu do gato por uns tempos, a cidade distrai... Só o espírito do amor, sempre o amor, arrumava algo para lembrar-se daqueles olhos nebulosos no trote contraditório de felicidade e quase morte.
    Em uma noite, porém, Cecília sonhou com ele, com a sua orelha de sangue bordô.
    Não conseguiu mais dormir com aquela imagem atolada na mesma mente que outrora disputou por uma desculpa para não ter pego ele no colo, levado a qualquer lugar onde houvesse leite e um descanso para os olhos...
    Essa imagem do gato então tornou-se crônica. Bem esta que eu acabei de lhes contar.
    Mesmo antes de terminar de ler (pela centésima vez, talvez, dado a minha estima pela crônica e pela cronista), me surpreendi, estava torcendo mais uma vez pela voz tímida da benevolência... Mesmo sabendo o não-saber do destino do gato que haveria de se revelar no final daquelas folhas...
   Peguei-me pensando: às vezes somos nós a Cecília atarefada, que passa por todos os gatos pretos, e escuta todos os argumentos, até mesmo muito sensatos, para não pegá-los no colo e dar-lhes a chance de uma vida nova, quando todas as feridas finalmente se curassem e o pelo finalmente crescesse, revelando um ser novo, revigorado e revigorante, como o sopro divino.
   Às vezes, e quantas vezes, somos nós também o gatinho preto. Quantas pulgas, quantas marcas, tantas feridas... E esperamos nós, com medo do próprio destino, por qualquer feixe de luz, qualquer sombra de esperança em Deus, no mundo, ou na humanidade que nos rodeia e que passa, tão mais alta, tão ocupada...
   Ainda me pego pensando: a que voz nós ouvimos quando somos gato ferido, ou quando somos apenas Cecília, ser humano que percorre a desconfortável descida da montanha de todo dia?
 
   

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