terça-feira, 26 de junho de 2012

Texto de hoje e sempre



Lá estava eu - diante de algo imenso, e ao mesmo tempo muito perto, ao alcance dos olhos. Algo puro, luminoso...
E eu podia tocá-lo. Tudo era uma pista, como um rastro de uma trilha ou a ultima centelha de um raio por onde se possa caminhar rumo à fonte luminosa.
Tudo era ideal, tudo era concretude. Não sabia se todas as coisas que não se via tinham se tornado subitamente visíveis, ou se todas as coisas visíveis tinham ganhado um brilho de sobrenatural.
Tudo parece ouro, a névoa se dilui. 
E no momento do sim, na fila para o grande encontro, como os discípulos, plenos de paraíso, via todos sorrindo um sorriso profundo,  celeste música.
Doa a tua vida... Como Maria... Aos pés da cruz.

sábado, 2 de junho de 2012

Sertão dos Pequeninos


   
    Eterno Pai, por Tu que estás em cada planta que morre, em todo riacho que seca, faz crescer nuvens no céu do Sertão!
    Bondoso Deus, Tu que és a Verdade, e estás em todos os pequenos, como podereis não estar em cada bicho morto, de costelas quase expostas por entre um couro seco? Como podereis não estar em cada bicho que quase morre, de sangue seco escaldante e olhos baixos que se rendem, como se estivessem vencidos, como se já estivessem mortos e a vida fosse só um gota d'água que se evapora? Por Tu mesmo, que estás neles, escurece as nuvens do Sertão!
    Divina Luz, que se fez carne e habitou entre nós, lembra-te da dor que sentistes, de todas as vezes que tivestes fome! Como podereis Tu não estar em todos os homens, nas mulheres, nas crianças, que sobrevivem, sim, graças também a ti, mas que choram todas as noites? O milho está seco, água clara faz tempo não se vê... Por Tu mesmo, que estás nesses homens, faz com que chorem também as nuvens!
    E dessa água que cai por amor, somente amor, frutifique a terra, renasçam bichos, plantas e homens novos. Que dos rios, pelo mesmo amor renascidos, possam morrer também as águas, vaporizadas, para que, feito nuvens, possam morrer de novo... Por amor, somente amor, Tua assinatura na Terra, escrita por entre os homens, mulheres e crianças, que choram e que hoje te pedem: faz chover no Sertão.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

À IMAGEM DE CECÍLIA

 
 

   A melhor maneira de criar algo novo, novíssimo, é aprendendo com tudo aquilo que é antigo. As antiguidades no geral guardam algo mágico, quase como um sopro divino - renovador e renovado.
   Dizem que por trás de cada texto existem vários outros, que um dia já foram publicados ou que nem saíram daquele vasto mundo que está na mente de quem escreve e de quem lê.
   Mas se eu pudesse criar um texto por cima de outro texto de alguém que já morreu, esse texto escondido seria  o dela: a menina dos olhinhos de gato... grande Cecília!
   Estava eu lendo uma de suas crônicas esta tarde mesmo. Sabe a sensação de ter algo grande, pulsando dentro, quase explodindo e pedindo: "leve-me para todos os cantos que fores, guarde-me na memória, conte-me ao vizinho, ao porteiro, ao amigo"?
   Pois bem, esta crônica a que me refiro se chama "Imagem".
   Cecília Meireles encontrou-se um dia de ter quebrado o carro entre algumas montanhas de Minas Gerais, eu suponho. E enquanto descia a montanha, um gatinho apareceu de repente. Era um pobre bichinho débil, que miava silêncio. Preto, parecia cinzento de tão sujo, maltratado, com um olho desfazendo-se em gelatina, e uma orelha empapada de sangue. 
   Assim diz ela: Olhou para mim tristemente, como nós às vezes olhamos para Deus. E eu certamente queria ajudá-lo. Mas então vi como aquele caminho deserto se fazia subitamente povoado; o espírito das superstições dizia-me: 'Olha que é um gato preto!' E o espírito da ciência murmurava-me: 'Está cheio de parasitas, que te infestarão!' E esse vil espírito prático da era contemporânea aparteava: 'Ademais, como podes ajudar se avista nem um teto nem um veículo?' E só o espírito do amor segredava tímido: 'Toma-o nas mãos e leva-o contigo! Verás que, no teu colo, seus olhinhos lacrimosos se fecharão, adormecidos; sua fome se esquecerá, suas feridas fecharão...'
    E assim ela continuou a descer a montanha, aos pés o gato preto quase morto, seguindo-a sempre, às vezes olhando para baixo, como que suplicasse ajuda por aquela tão grande possibilidade de alento que lhe fazia companhia; outras vezes trotando de felicidade, como se as feridas e o pelo caído mostrando nuas as costelas numa festa de pulgas já não fossem mais problema...
    E com ela desciam também todos os espíritos a duelarem por uma decisão.
    Todos continuavam a descer: o gato, os espíritos, e o coração de Cecília, que cochichava aflito: 'o grande céu, a verde floresta, o ouro do Sol derramando-se pela estrada, o mundo e as criaturas tornavam-se enigmáticos, ferozes e inúteis.'  
    Já na metade da montanha, ela resolve parar na sombra de uma árvore. O sol escaldante fazia estrelinhas no chão por entre as folhas, e ela então olhou o quanto já tinham percorrido: bastante para alguém sem água nem comida, mais ainda para um animal naquele estado de socorro, com os olhos nublados de remela e lágrima.
    Mas não havia nenhum hospital para gatos pretos feridos e famintos, não havia um ser humano sequer além dela, nenhuma salvação para quem tem fome ou sede, não havia casas à vista, o gato estava cheio de pulgas, sem contar as demais doenças contagiosas que todos nós sabemos que existem, tudo isso gritavam os espíritos à pobre Cecília, que agora via o gatinho acariciar seus pés...
    Só o espírito do amor segredava quase em silêncio: 'Não deixes o teu coração endurecer com o que estás ouvindo... Faze alguma coisa por este pobre animal que te segue arquejante. Lembra-te se algum dia  foste atrás de alguma coisa que fugisse, fugisse... Reflete que um dia poderás ir...'   Enquanto o espírito científico dizia: 'Mas um gato, afinal de contas, não é gente. E o sofrimento de um gato não é o sofrimento humano'.
    E o espírito do amor, suavemente insistia: 'Tudo é um sofrimento só, de alto a baixo, na criação. Compadece-te deste que te acompanha, pequena coisa que o destino pôs no teu caminho.'
    Ela perguntava a si mesma: 'Por que não nascem entre as pedras arroios de leite para os gatinhos abandonados? Ah! Irmão Francisco, os lírios andam vestidos de seda, e os passarinhos por toda a parte encontram grão que os sustente, mas o gatinhos, bem vês, não têm rato com que se distraiam e o transeunte humano nem o pode socorrer nem explicar...'
    Pôs-se então a descer de novo a montanha, extensa, que agora tinha subidas e descidas... Pela estrada nenhum leiteiro a dar um pote de leite ao gato, e alguns queijos de minas para a mulher igualmente faminta.
    No coração dela ainda soava aquela voz que lhe pedia para cuidar ela mesmo daquele gato, segurá-lo, retirar uma a uma aquelas pulgas todas, levá-lo consigo para onde quer que fosse. Mas na sua mente todos os espíritos ainda duelavam entre preconceitos e superstições, afinal, era um gato preto, em frangalhos...
    Nesse meio tempo, subia alguma pessoa distraída, e o gatinho, ainda mais distraído com os pés que iam dos que vinham, passou a seguir o outro andarilho, no caminho contrário ao da nossa cronista.
    Ela bem que se esqueceu do gato por uns tempos, a cidade distrai... Só o espírito do amor, sempre o amor, arrumava algo para lembrar-se daqueles olhos nebulosos no trote contraditório de felicidade e quase morte.
    Em uma noite, porém, Cecília sonhou com ele, com a sua orelha de sangue bordô.
    Não conseguiu mais dormir com aquela imagem atolada na mesma mente que outrora disputou por uma desculpa para não ter pego ele no colo, levado a qualquer lugar onde houvesse leite e um descanso para os olhos...
    Essa imagem do gato então tornou-se crônica. Bem esta que eu acabei de lhes contar.
    Mesmo antes de terminar de ler (pela centésima vez, talvez, dado a minha estima pela crônica e pela cronista), me surpreendi, estava torcendo mais uma vez pela voz tímida da benevolência... Mesmo sabendo o não-saber do destino do gato que haveria de se revelar no final daquelas folhas...
   Peguei-me pensando: às vezes somos nós a Cecília atarefada, que passa por todos os gatos pretos, e escuta todos os argumentos, até mesmo muito sensatos, para não pegá-los no colo e dar-lhes a chance de uma vida nova, quando todas as feridas finalmente se curassem e o pelo finalmente crescesse, revelando um ser novo, revigorado e revigorante, como o sopro divino.
   Às vezes, e quantas vezes, somos nós também o gatinho preto. Quantas pulgas, quantas marcas, tantas feridas... E esperamos nós, com medo do próprio destino, por qualquer feixe de luz, qualquer sombra de esperança em Deus, no mundo, ou na humanidade que nos rodeia e que passa, tão mais alta, tão ocupada...
   Ainda me pego pensando: a que voz nós ouvimos quando somos gato ferido, ou quando somos apenas Cecília, ser humano que percorre a desconfortável descida da montanha de todo dia?